Parece uma farmácia qualquer da rede CVS , uma das mais populares dos Estados Unidos. As prateleiras estão cheias de produtos para a saúde e remédios, as caixas registradoras são informatizadas e as receitas médicas são classificadas da forma habitual. Mas se o cliente abrir um frasco de comprimidos verificará que, no interior, há balas Skittles em vez de remédios. É uma “farmácia de mentira”, lançada pela Goodwill em Baltimore, uma cidade no leste dos Estados Unidos localizada a uma hora de carro de Washington. Essa empresa de recrutamento e formação de populações desfavorecidas criou o estabelecimento para treinar trabalhadores contratados para atuar nas quase 10.000 farmácias que a CVS possui em todo o país. “A empresa está crescendo muito e precisa de mais trabalhadores qualificados do que os disponíveis no mercado”, explica Sam Abney, responsável pelo projeto. “Procuramos esses trabalhadores e lhes oferecemos uma entrada no mercado de trabalho, pulando os primeiros degraus e recebendo diretamente o dobro do salário mínimo”, acrescenta.
Histórias como essa se repetem hoje em todo o país. As empresas norte-americanas precisam de trabalhadores em um momento em que a economia apresenta nove anos consecutivos de crescimento. A taxa de desemprego nos EUA caiu para 3,7% em setembro, seu nível mais baixo desde 1969, segundo dados oficiais divulgados na semana passada. E muitos analistas preveem que cairá ainda mais nos próximos meses. O país registra 96 meses seguidos de aumento de contratações. Um cenário que, combinado com a inflação baixa, prenuncia “uma época extraordinária”, nas palavras de Jerome H. Powell, presidente do Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos EUA.
Otimismo até 2020
O Fed prevê que o desemprego continuará abaixo de 4% até o fim de 2020 e que a inflação permanecerá baixa, em torno de 2%, durante esse período. A última vez que o desemprego se manteve tão baixo por tanto tempo foi na década de sessenta e a inflação disparou, algo que nem o Fed nem a maioria dos analistas acreditam que acontecerá desta vez. “Perguntaram-me se nossas previsões são boas demais para ser verdade… é uma pergunta razoável”, brincou Powell.
A um mês das eleições legislativas, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, alardeia os dados sobre emprego como seu grande triunfo para tentar manter a maioria republicana no Congresso. Mas a verdade é que os números refletem uma tendência constante há quase dez anos. “A atual expansão começou muito antes da Administração Trump e é em grande parte uma continuação das políticas de estabilização realizadas depois da Grande Recessão, pelo Fed e pela Administração Obama”, explica Andrew Chamberlain, economista-chefe da empresa de recrutamento de pessoal Glassdoor. “A economia norte-americana vem se expandindo há mais de nove anos. Inclusive antes dos cortes de impostos de 1,5 trilhão de dólares (cerca de 5,67 trilhões de reais), o mercado de trabalho estava perto do pleno emprego. Mas a redução fiscal foi um poderoso estímulo e aqueceu ainda mais a economia.”
Josh Bivens, diretor de pesquisas do Economic Policy Institute, concorda que “a tendência de queda do desemprego desde 2010 não mudou muito com Trump”. “Grande parte do crédito deve ser dado ao Fed, que foi comedido e lento na elevação das taxas de juros. Infelizmente agora começou a acelerar o ritmo desses aumentos, mas até 2017, basicamente, deixou o desemprego cair”, explica.
Bivens aponta outro fator importante, além da redução de impostos, na recente mudança da austeridade para o estímulo fiscal. “Costuma-se menosprezar que o aumento da despesa acordado pelo Congresso no final de 2017 está proporcionando mais estímulos do que a redução de impostos. Essa mudança da austeridade para o estímulo explica muito desse pequeno aumento no crescimento desde o início de 2018”, adverte.
Para avaliar a magnitude da recuperação, convém lembrar o ponto de partida, com a quebra do Lehman Brothers. Somente em setembro de 2008, em meio a um sistema financeiro em queda livre, 443.000 empregos foram destruídos. Outros sete milhões desapareceriam nos meses seguintes.
Disso se passou, em 10 anos, a uma taxa de emprego estável abaixo de 4%, algo que aconteceu poucas vezes desde que começaram a ser feitos registros, sete décadas atrás. Além de alguns meses no ano 2000, antes da explosão da bolha tecnológica, houve apenas dois longos períodos de taxa de desemprego inferior a 4%, durante as guerras da Coreia e do Vietnã, quando a combinação de um forte crescimento econômico com a convocação para o Exército de milhares de jovens, muitos deles sem diplomas universitários, fez o desemprego praticamente desaparecer.
É uma das razões pelas quais os dados atuais de emprego, sem uma guerra que esvazie o mercado de trabalho de jovens civis, são tão excepcionais. Mas isto não é tudo. “Um fator muito mais importante, em minha opinião, é que a participação das mulheres no mercado de trabalho nos anos sessenta era muito menor do que agora”, explica Chamberlain. “Portanto, a baixa taxa de desemprego atual tem um impacto muito mais amplo na população do que há cinco décadas.”
O reverso da fotografia luminosa é o fato de que o pleno emprego não se traduz em um aumento significativo dos salários, que aumentaram apenas 2,8% em relação ao ano passado, quase o mesmo que a inflação. Para Bivens, o baixo crescimento dos salários é um indicador da relativa cautela com a qual é preciso encarar os bons dados de emprego. “A qualidade do trabalho, e principalmente dos salários, é uma preocupação”, explica. “E o importante é que não é a composição do emprego, por indústria ou ocupação, o que explica esse lento crescimento dos salários, que é uma fraqueza maciça. Acredito que isso é um sinal de que ainda há folga no mercado de trabalho. Parte dessa margem vem de pessoas que conseguem emprego quando antes não haviam se definido nas pesquisas como procurando trabalho ativamente. No final, o teste definitivo para o pleno emprego será um aumento real dos salários, o que ainda não vimos.”